Estava lá, naquela gaveta cheia de tralha. Tinha rolha velha, barbante, pilha usada, isqueiro sem pavio. Ah, mas alguém há de precisar um dia de alguma coisa aqui. Foi quando vi a fraca luz da lamparina de querosene. Uma mão começou a vascular daqui e dali até que nos pegou, nos colocou lado a lado e mediu, mais com a intuição do que com a régua. Saímos da gaveta e fomos para a máquina barulhenta. Encaixou-nos junto do eixo e rodou a chave. Apertou o quanto deu. Já era noite e a cada quilômetro parava para nos averiguar, só com o toque do dedo enluvado.
Chegou onde precisava e achou a quem nós substituímos bravamente. No dia seguinte rumou para casa carregando nos "guardados" da mochila uma porca velha, sem rosca já, e um miolo de rolamento. Hoje, ainda guardados com carinho, podemos contar essa história e deixar um dizer que a experiência ensina:
"Quem guarda aquilo que não serve tem sempre o que precisa".
Essas duas peças me ajudaram a andar 45 km, no meio da noite, em direção a Conceição do Mato Dentro onde havia caído o espaçador do eixo traseiro de minha motocicleta, no reparo do pneu feito durante o todo o dia em que fiquei esperando na estrada. Lá conheci um garoto, uma garota e a avó deles que me ofereceu pouso e jantar (arroz, tomate, molho de mamão e três piabas pescadas no ribeirão). Hospitalidade e calor humano que só se encontra na simplicidade. Nunca vou esquecer daquela gente, daquela gaveta e da felicidade que senti ao encontrar essas duas peças. Hoje elas não estão engavetadas. Ficam ali na sala, no tacho de cobre (pouca coisa mais arrumado) e contam um pouco das histórias vividas na época da gaveta.
No dia em que me mudar daqui terei que arrumar uma carreta para levar tantos guardados.